Restaurar florestas é cuidar das pessoas

19/03/2024
Na Amazônia brasileira, os agricultores estão restaurando florestas usando práticas agroflorestais. O objetivo não é retornar para uma floresta "natural", mas sim enriquecer e restaurar as vidas dos agricultores e das comunidades envolvidas nesse processo. Algumas agroflorestas abrigam quase 200 espécies diferentes por hectare. Os benefícios dessa prática são inúmeros: a volta da fertilidade do solo, o aumento da biodiversidade, o impulso da economia e, acima de tudo, uma melhora visível na dieta e na saúde das populações locais.
Projeto de restauração florestal no Estado do Pará no Brasil, utilizando práticas agroecológicas para promover a saúde do solo e mobilizar a biodiversidade local. © Ianca Moreira, Relforamaz
Projeto de restauração florestal no Estado do Pará no Brasil, utilizando práticas agroecológicas para promover a saúde do solo e mobilizar a biodiversidade local. © Ianca Moreira, Relforamaz

Projeto de restauração florestal no Estado do Pará no Brasil, utilizando práticas agroecológicas para promover a saúde do solo e mobilizar a biodiversidade local. © Ianca Moreira, Relforamaz

Lívia Navegantes é professora de agronomia na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém. Ela trabalha com um grupo de agricultores, no fortalecimento e difusão de seus de seus conhecimentos sobre sistemas agroflorestais e restauração de terras degradadas na Amazônia brasileira. Quando ela pergunta aos agricultores sobre as primeiras mudanças que eles estão vendo com o retorno das árvores, eles respondem "nós mesmos". "Eu esperava que eles me falassem sobre os animais deles, a melhoria na produção ou na vegetação. Na verdade, o que importa é a alimentação e a saúde. As agroflorestas transformam as vidas deles por inteiro".

Agrofloresta é um nome genérico para sistemas de uso da terra onde espécies lenhosas perenes como árvores, arbustos, palmeiras, bambus, etc., são deliberadamente utilizadas nas mesmas unidades de área com culturas agrícolas e/ou animais, num determinado arranjo espacial e temporal. A associação de cultivos agrícolas (como mandioca), com espécies florestais (como mogno), é sempre feita com base no dinamismo, na ecologia e na gestão dos recursos naturais, que diversificam e sustentam a produção, trazendo maiores benefícios sociais, econômicos e ambientais para todos aqueles que usam o solo em diversas escalas. Os sistemas agroflorestais podem ter cinco ou cem espécies de árvores por hectare, sendo extremamente ricos em biodiversidade. "Construímos esses sistemas pensando na floresta, por isso tentamos mobilizar um nível muito alto de biodiversidade”, explica Lívia Navegantes. “A ideia é que as plantas estejam presentes em todos os níveis. Portanto, teremos plantas rasteiras, pequenos arbustos que gostam de sombra, até grandes árvores que buscam a luz. Essa estratificação de plantas é tanto aérea quanto enraizada."

lote agroflorestal com vários camadas de plantas, desde a cobertura do solo até árvores de vários metros de altura © Ianca Moreira, Relforamaz

lote agroflorestal com vários camadas de plantas, desde a cobertura do solo até árvores de vários metros de altura © Ianca Moreira, Relforamaz

As práticas agroflorestas recuperam solos e paisagens afetadas por monoculturas não adaptadas ao contexto amazônico. Elas ajudam a garantir maior sustentabilidade e melhoram as condições de vida das populações locais, seja em termos ambientais, econômicos ou sociais. Os agricultores gostam de dizer que estão plantando "florestas de alimentos". Além da produção de alimentos, essas agroflorestas geralmente incluem plantas medicinais e árvores madeireiras.

A potência do conhecimento dos agricultores ainda é subestimada pela ciência

Lívia Navegantes está realizando estudos sobre práticas agroflorestais no âmbito do Sustenta e Inova, um projeto de desenvolvimento financiado pela União Europeia e coordenado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) no Pará. O ÈȲ©ÌåÓý está contribuindo para o projeto por meio do trabalho de restauração de terras degradadas, em conjunto com seus parceiros brasileiros de longa data, a UFPA, a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e a Embrapa. Juntos, os cientistas mapearam mais de 400 iniciativas de produtores rurais de restauração florestal na região amazônica oriental do Brasil, em torno de Belém, e descobriram que 78% dos produtores rurais que buscam restaurar a floresta estão fazendo isso por meio da agrofloresta.

Mesmo assim, essas iniciativas de restauração florestal permanecem marginalizadas e a agrofloresta ainda está longe de ser uma prática majoritária. Em municípios onde a maioria da população se identifica como agricultor e pratica a agricultura, apenas um terço, ou menos, tem conhecimento sobre a agrofloresta. No entanto, o movimento existe e vale a pena estudá-lo e apoiá-lo. "Quem são os agricultores da Amazônia que estão tentando restaurar a floresta e o que os motiva a adotar essas práticas? pergunta Emilie Coudel, socioeconomista do ÈȲ©ÌåÓý, com quem a reportagem também conversou. Ela explica: “No Sustenta e Inova, estamos tentando documentar toda a diversidade das práticas de restauração agrícola e, em seguida, reunir esses agricultores experimentais para que possam aprender com as experiências uns dos outros".

Lívia Navegantes visita uma agrofloresta, onde os agricultores cultivam cacau e açaí © Ianca Moreira, Refloramaz

Lívia Navegantes visita uma agrofloresta, onde os agricultores cultivam cacau e açaí © Ianca Moreira, Refloramaz

Ela e Lívia Navegantes criaram um grupo de pesquisa que reúne cientistas, estudantes e agricultores: o . "Pensamos juntos em formas sustentáveis de produção na Amazônia, explica Lívia Navegantes. Conversamos sobre quais espécies usar, as melhores técnicas de fertilização orgânica e quais combinações de espécies favorecer". Emilie Coudel acrescenta: "Tentamos apoiar essas alternativas emergentes. Oferecemos aos agricultores a oportunidade de co-construir referências para seus sistemas, mas, acima de tudo, reforçamos a ideia de que o conhecimento que eles têm é válido e valioso, e que eles são os mestres da agrofloresta".

Para treinar essa rede de agricultores, o grupo Refloramaz, com o apoio da Sustenta e Inova, lançou um curso de especialização para líderes de comunidades rurais. O curso reúne cerca de quarenta pessoas de diversas origens: alguns são gerentes de ONGs ou instituições públicas, outros são professores de escolas rurais e outros são, exclusivamente, agricultores. O objetivo desse grupo de pesquisa um tanto atípico é aproveitar ao máximo o conhecimento dos agricultores. Como aponta Lívia Navegantes, "os agricultores que praticam a agrofloresta na Amazônia geralmente vêm de famílias que acumularam conhecimento durante várias décadas. Eles podem nos dizer instantaneamente qual planta dará os melhores resultados para um determinado uso, ou como um determinado arbusto reage a um determinado uso."

Redes para disseminar o conhecimento

O grupo Refloramaz reúne uma ampla gama de comunidades rurais e diversos estudantes: agricultores, indígenas, quilombolas, etc. Cada realidade leva a diferentes práticas agroflorestais, mostrando que não há uma solução única para a restauração. No entanto, todas elas seguem os mesmos princípios agroecológicos, com foco na saúde do solo e na mobilização de um alto nível de biodiversidade. "Um dos objetivos da Refloramaz é criar uma rede de agricultores que compartilham os mesmos valores. Essa rede está construindo sua própria legitimidade política, a de propor ações e políticas públicas mais adaptadas à sua realidade e que apoiem a agrofloresta e a restauração florestal", diz Emilie Coudel.

Membros da Refloramaz em uma oficina © Ianca Moreira, Refloramaz

Membros da Refloramaz em uma oficina © Ianca Moreira, Refloramaz

 

Além das questões agronômicas, os agricultores-estudantes do Refloramaz são fortalecidos em seu papel de lideranças locais. Por meio de seu envolvimento com cientistas e autoridades locais, eles assumem o papel político de defensores da disseminação das práticas agroflorestais na Amazônia. Durante os encontros mensais e coletivos para trocar conhecimentos e implantar novas agroflorestas, esses agricultores-estudantes convidam suas comunidades para participar e aproveitam a oportunidade para difundir o que estão aprendendo, discutir sobre a saúde do solo e apresentar as práticas agroflorestais.

Joice Ferreira é ecologista da Embrapa. Ela também é uma das fundadoras do grupo Refloramaz: "O envolvimento das comunidades locais é absolutamente essencial para garantir que a restauração florestal seja realizada de forma adequada, reflita os valores culturais e, acima de tudo, atenda às necessidades locais. O Brasil está em um momento muito especial nesse sentido. O plano nacional de restauração está sendo revisado e será lançado no final do ano com novos objetivos e estratégias. O plano de restauração do Pará foi lançado no final de 2023. Em outras palavras, chegou a hora de colocar esses planos em ação, de torná-los realidade. A Refloramaz está dando uma grande contribuição para isso, fornecendo consultoria sobre como desenvolver processos de restauração baseados na co-construção com as comunidades locais, aproveitando ao máximo seus conhecimentos, interesses e potencial."

Entre os agricultores-estudantes do Refloramaz, as mulheres estão em grande evidência e compõem 40% dos integrantes. Para Lívia Navegantes, o lugar das mulheres nesse movimento é fundamental: "Na Amazônia brasileira, as mulheres estão muito envolvidas no trabalho de restauração. Elas geralmente cuidam de suas famílias, por meio da alimentação e da saúde. A maioria delas conhece muitas plantas medicinais, por exemplo. Para elas, cuidar de suas famílias também significa cuidar do meio ambiente".

Duas estudantes da Refloramaz plantando um lote agroflorestal © Ianca Moreira, Refloramaz

Duas estudantes da Refloramaz plantando um lote agroflorestal © Ianca Moreira, Refloramaz

Compromisso do Brasil com a restauração florestal, em linha com a agenda internacional

Na COP21 em 2015, o Brasil se comprometeu a restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030. Esse compromisso também coincide com os objetivos estabelecidos pela . Desde 2015, essa promessa tem se traduzido em uma série de ações, desde o combate ao desmatamento até a restauração de pastagens degradadas. Em 2025, o país sediará a conferência climática COP30 em Belém: uma oportunidade para fazer um balanço do progresso alcançado, dez anos depois.